Compra de votos persiste no Brasil e desafia o poder público

Polícia Federal tem 1 820 inquéritos em andamento sobre crimes eleitorais - desses, 1 091 foram abertos neste ano.

Veja 
01/09/2024


O Brasil era um império governado por dom Pedro II e o direito ao sufrágio político ainda era uma coisa para poucos quando o senador João Maurício Wanderley, o Barão de Cotegipe, subiu à tribuna da Casa, no dia 16 de outubro de 1880, para criticar a primeira forma conhecida de compra de votos na história brasileira. "Forma-se assim um corpo eleitoral não das melhores pessoas residentes na freguesia, mas daquelas que chamam-se 'eleitores do cabresto'”, denunciou, em referência à corrupção praticada corriqueiramente pelos coronéis baianos nas eleições parlamentares indiretas. Com isso, imortalizou a expressão usada para a coerção e suborno do eleitorado mais pobre. Passados quase 150 anos, em que pese os avanços da democracia brasileira, a compra da vontade do eleitor persiste como uma chaga que desafia o poder público.

O número de novos "coronéis" a investir na aquisição de vantagens eleitorais não é pequeno. A Polícia Federal tem 1 820 inquéritos em andamento sobre crimes eleitorais - desses, 1 091 foram abertos neste ano. As suspeitas mais recorrentes envolvem fraudes em inscrição de eleitor, compra de votos e omissão de gastos de campanha. Com frequência, as três práticas estão relacionadas entre si.

Segundo especialistas, as irregularidades no cadastro de eleitor não costumam ser meros erros burocráticos, mas tentativas de burlar a regra do domicílio. "As inconsistências mais comuns são pedidos de transferência com comprovantes falsos de endereço, que geralmente ocorrem quando o candidato oferece benefícios a pessoas de municípios vizinhos em troca de votos", explica Janiere Portela, membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e servidora do Tribunal Regional Eleitoral da Bahia. Já a não declaração de despesas, conhecida como "caixa dois", é um mecanismo corriqueiro para mascarar uma série de fontes ilegais de recursos e destinação ilícita de valores, incluindo montantes reservados para o suborno do eleitorado.

O conceito de compra de votos tornou-se bastante ampliado nos últimos anos. Sob a lei eleitoral, qualquer transação que envolva a troca de benefícios por apoio nas urnas, seja dinheiro, seja bem material ou cargo, pode ser enquadrada nesse crime. Vale destacar que a punição não é prevista só ao candidato, mas também ao eleitor. Para especialistas, existe um fator cultural na política brasileira, herança do coronelismo e agravado pela desigualdade social, que naturaliza o câmbio de favores. "O que se vê é que a própria população, especialmente em regiões mais vulneráveis, já espera do candidato um favor em troca do apoio nas urnas", avalia Samuel Falavinha, advogado especialista em direito eleitoral e membro da Abradep. Alguns analistas destacam que a ascensão das lideranças comunitárias, religiosas e até criminosas, particularmente em periferias, torna o comércio de votos cada vez mais sofisticado: ao invés de cooptar um eleitor por vez, o candidato se reúne com pessoas de alta influência local e negocia a troca de centenas ou milhares de votos por benesses, numa espécie de coronelismo moderno. "Essa prática de comprar o voto 'no atacado' ao invés do 'varejo' pode até ajudar o candidato diante da lei, já que ele não estaria diretamente adquirindo o voto de cada eleitor, mas fazendo uma 'cegueira deliberada' para a coação por essas lideranças", diz Fernando Neisser, professor de direito eleitoral na FGV-SP.

A evolução do mercado de eleitores, porém, não invalida a mais tradicional forma de corrupção: dinheiro vivo por voto. Prova disso é o caso ocorrido em Roraima, em abril, quando um motorista do senador Mecias de Jesus (Republicanos), com o carro do parlamentar, foi preso no município de Alto Alegre carregando R$ 50.000 em notas de R$ 100 escondidas nas calças e meias. A detenção aconteceu a três dias de uma eleição suplementar para a prefeitura. A PF, que pediu autorização ao Supremo para investigar o senador, suspeita que a quantia seria destinada à compra de votos - o parlamentar nega. Em São Luís, em julho, policiais encontraram R$ 1,1 milhão no porta-malas de um carro. A investigação liga o veículo, o local onde foi estacionado e os dois homens flagrados por câmeras ao prefeito Eduardo Braide (PSD) e sua família. Uma das suspeitas é que o dinheiro seria usado para a compra de votos - o prefeito diz que não teme a apuração. Na semana passada em Belford Roxo, na Baixada Fluminense, o candidato a vereador Sérgio Accioly dos Santos (Republicanos), conhecido como Dinho Resenha, foi preso por participar não de um, mas de dois esquemas de compra de votos - nas eleições atuais e de 2020. O esquema previa gasto de R$ 50 por eleitor. Há pistas de envolvimento dele com chefes do tráfico local e um policial militar preso por vender armas da corporação.

É inegável que a estrutura de combate à corrupção eleitoral evoluiu significativamente desde os tempos do coronelismo, na virada entre os séculos XIX e XX, quando nem sequer existiam tribunais eleitorais. Naquele período, a realização e fiscalização dos pleitos eram competências do Legislativo - caso um rival "indesejável", superando as expectativas, conseguisse os votos necessários para se eleger, bastava uma articulação entre parlamentares para invalidar sua vitória, prática que ficou conhecida como "política da degola".

A própria Justiça Eleitoral foi criada apenas em 1932, justamente como reação à manipulação das urnas pelos coronéis. O primeiro Código Eleitoral, além de inaugurar o voto secreto e expandir o direito às mulheres, previa pena de até dois anos de prisão por compra e venda de votos. A punição foi endurecida para quatro anos com o Código Eleitoral de 1965, que, ironicamente, foi aprovado durante a ditadura militar e vigora até hoje. Atualmente, tramita no Senado uma nova proposta de código que, para especialistas, aborda uma das principais dificuldades para se investigar casos de troca de favores: a pena sobre o eleitor que vende seu voto, considerada desproporcional e contraproducente para os julgamentos. "O eleitor envolvido é um dos poucos capazes de denunciar o crime, e geralmente não o faz por medo da lei. É preciso modernizar a legislação com conceitos de corrupção passiva, ativa e delação", explica Neisser, que foi consultor jurídico na elaboração do texto.

O país se debruça ainda na tentativa de enquadrar um delito que já perpassa três séculos, enquanto novos desafios, muito mais complexos, se avizinham. Entre eles, estão as fraudes trazidas pelas novas tecnologias - como o uso de redes sociais e de inteligência artificial - e o cumprimento de cotas de gênero e raça, que, em vez de promover maior diversidade, virou porta aberta para outra praga aparentemente interminável: a dos candidatos laranjas. A maior ameaça, no entanto, vem da internet. "Temo pela criação de um novo coronelismo no mundo, o coronelismo digital", disse a ministra Cármen Lúcia ao ser eleita presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em maio. Por uma triste ironia, esses novos inimigos digitais convivem agora com as velhas ferramentas criadas para corromper o processo. A persistência do crime da compra de votos no Brasil é um acinte ao país porque ela não é só um anacronismo, mas um ataque frontal a um princípio basilar da democracia: o da livre vontade do eleitor.
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